

Domingos Sávio
Domingos Sávio, sanitarista e neurologista, foi um sujeito histórico da construção da Política Pública de Saúde Mental no Brasil. Desde a juventude via na coletividade e em uma nova construção política um apelo para enriquecer a medicina e a saúde pública. Foi diretor de hospitais psiquiátricos, nos anos 1980, Coordenador Nacional de Saúde Mental pelo Ministério da Saúde, nos anos 1990, e colaborou para consolidação político-institucional do campo. Faleceu em 2023 deixando legado de garantia de direitos dos usuários da Saúde Mental brasileira a ser honrado.
Esta sala virtual é uma homenagem a Domingos Sávio e a todos que trabalharam e seguem trabalhando guiados pelos direitos humanos e pelo cuidado em liberdade. Apresentamos aqui um posto de observação constituído por um conjunto documental multimídia: fontes heterogêneas concebidas como banco de pesquisa qualitativa para reúso aberto e síntese de ações comunicacionais que retratam cenas da história contemporânea da consolidação das Políticas Públicas da Saúde Mental brasileira e da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, a partir das falas diretas e das histórias de si dos envolvidos — formuladores, idealizadores, gestores e trabalhadores.
Essa memória que se volta sobre o experimentado traz o lembrete que a dignidade da vida humana, para além dos estigmas e preconceitos da loucura, precisa seguir como farol.

O lugar das memórias em tempos árduos
As memórias que reunimos aqui são pedaços de vidas pulsantes, pistas de um acidentado caminho da democratização brasileira, marcas em uma paisagem material e simbólica para que, em tempos árduos, outros possam encontrar meios para seguir em frente. Compreendemos essas memórias da Saúde Mental como elixir e unguento para que a humanidade não interrompa o processo civilizatório iniciado com a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica Brasileira.
A conjuntura política que vivenciamos e o agravamento dos desmontes da Saúde Mental entre 2016-2021 são desafios cotidianos concretos para que se mantenha a reflexividade crítica, que se debruça sobre os próprios processos históricos e constrói alternativas dignas de seguridade social. Oferecemos, no fundo documental Memórias da Saúde Mental/Cadernos da Reforma, insumos de pesquisa científica qualitativa para ampliação do conhecimento e novos diálogos que amparem a produção científica conexa ao cuidado em liberdade, fomentando, ainda, a literacia da sociedade sobre Saúde Mental e Atenção Psicossocial e a superação das violações de direitos.

“ Se cada dia cai,
dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.
Há que sentar
Na beira do poço da sombra
e pescar luz caída com paciência."
Pablo Neruda

Desejamos que essas histórias e memórias, disponibilizadas no repositório de Ciência Aberta (Arca Dados) da Fiocruz e nos canais do projeto Morar em Liberdade, possam estimular outros pesquisadores a se juntarem na “beira do poço da sombra” das experiências, para que mais claridade possa ser pescada, ampliando o conjunto documental e consolidando uma comunidade de intercâmbios a partir dos canais da abertura de dados de pesquisa e da Ciência Cidadã.
Arqueologia das pesquisas e motivações de Ciência Aberta
Memórias da Saúde Mental: Cultura, Comunicação e Direitos Humanos
Pesquisa de vertente sócio-histórica longitudinal, Memórias da Saúde Mental priorizou os dispositivos das políticas públicas contemporâneas de Saúde Mental em suas múltiplas interfaces com a garantia de Direitos Humanos. Configura-se como um projeto interdisciplinar de resgate, guarda e difusão de histórias de vida da Reforma Psiquiátrica Brasileira que inclui histórias de si e narrativas dos formuladores e gestores de políticas públicas, trabalhadores da atenção psicossocial, representantes do legislativo, do executivo federal, dos movimentos sociais e usuários da Saúde Mental.
Em especial, a origem do programa de história oral dos quadros políticos e administrativos que compõem o fundo “sujeitos históricos” das Memórias da Saúde Mental/Cadernos da Reforma vincula-se à pesquisa de Avaliação do Programa de Volta para Casa, ambos conduzidos pelo Núcleo de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (Nusmad). Iniciamos a coleta e a produção do acervo histórico de modo integrado, reunindo fontes primárias e secundárias em uma linha do tempo interativa, que visava oferecer quadros compreensivos sobre a política pública de Saúde Mental e marcos privilegiados da Reforma Psiquiátrica Brasileira para os pesquisadores do Nusmad, situados em diferentes localidades do Brasil, e subsidiar práticas de formação no âmbito do Mestrado Profissional de Políticas Públicas em Saúde da Fiocruz Brasília. Nos valemos de estratégias de pesquisa que privilegiaram a contextualização histórica multidimensional e longitudinal, integrando fontes iconográficas e textuais, visando futuras análises do desenvolvimento institucional dessa política pública considerando a atuação dos diferentes segmentos sociais envolvidos para sua consolidação.

Parte do conjunto documental das pesquisas e dessas ações comunicacionais desenvolvidas entre 2017 e 2024 começou a ser disponibilizada na íntegra no repositório de Ciência Aberta da Fiocruz e nos canais próprios de comunicação intitulados “Morar em Liberdade” e originou uma linha editorial (ebooks, revistas e websérie), além da Instalação Multimídia, com 13 edições físicas e, agora, virtualizada. Esse programa de difusão alinha-se com a Ciência Cidadã em uma linguagem que reúne arte, ciência e tecnologia em suportes multiplataformas. As narrativas produzidas nesse contexto ampliado interpelam o lugar social da loucura e da inclusão social, visando colaborar com a redução de estigmas em relação à população egressa de instituições totais, honrando as existências e o trabalho pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial de todos que nos antecederam, deixando seus legados.

"A recordação do passado é necessária para afirmar a própria identidade, tanto individual como de grupo. Um e outro também se definem, evidentemente, por sua vontade no presente e seus projetos de futuro; mas não podem prescindir dessa primeira lembrança.."
Tzvetan Todorov

Arqueologia de um acervo do tempo presente
História, Memória e Comunicação: para que não se esqueça
Era 2017, enquanto celebrávamos os 30 anos do Encontro de Bauru e trabalhávamos nas pesquisas sobre o cuidado em liberdade promovido no Brasil. Agravava-se a instabilidade da conjuntura política contemporânea. Eram mudanças rápidas do cenário da macropolítica iniciadas no final de 2015 e aprofundadas a partir de dezembro de 2017. No âmbito das políticas de Saúde Mental, iniciava-se um processo de contrarreforma psiquiátrica e várias pessoas que atuaram para consolidação do campo na administração pública deixavam Brasília e os quadros do Ministério da Saúde. Desde então, o que nomearam como “nova política” passou a ser implementado, desfigurando a Rede de Atenção Psicossocial de base territorial. A consciência do valor da preservação dos documentos administrativos que consolidaram o cuidado de base territorial e testemunhos das pessoas que trabalharam por isso adensava-se dia a dia.

Reorganizamos o programa de história oral e concebemos um banco de memórias multimídia com as identidades reveladas, garantindo a salvaguarda dos testemunhos em um formato semelhante aos realizados pelas Comissões da Verdade. Assim, além da investigação das origens e implementação do Programa de Volta para Casa (PVC), agregamos dimensões sobre a Política Pública de Saúde Mental brasileira partindo da trajetória de vida de cada um dos envolvidos e culminando com uma reflexão sobre o cenário da história política do tempo presente.
As pessoas escolhidas para a realização das entrevistas em primeiro lugar estavam associadas a política pública federal de modo direto, ou seja, participaram da composição das coordenações, formulação e gestão da política setorial da Saúde Mental contemporânea (1991-2015); pessoas com maior ou menor envolvimento com os movimentos sociais; e Paulo Delgado, como um representante singular do legislativo, autor da Lei 10.216. Muitas dessas pessoas, além de comporem os quadros político- administrativos em diferentes instâncias, destacavam-se em contextos regionais da Saúde Mental e Atenção Psicossocial e movimentos antimanicomiais, estavam diretamente envolvidas com as redes de assistência psicossocial locais e colaboraram de diferentes formas com a consolidação das políticas públicas de desinstitucionalização.

Nesse sentido, o grupo de entrevistados é composto por representantes dos três níveis da territorialidade político-administrativa, perfis multiprofissionais, configurando-se como um conjunto heterogêneo que expressa algumas das singularidades dos processos históricos da política pública que promovem a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a consolidação. O conjunto original de 24 entrevistas possui cerca de 40 horas de documentação e foi realizado entre 2017 e 2018. Todo o material está também textualizado e a maior parte encontra-se totalmente inédita.



O trabalho de documentação e o plano de disponibilização pública (Ciência Aberta/ Arca Dados) foi retomado em 2024 de forma modesta, mas extremamente significativa, porque contempla a reconstrução no âmbito federal das Políticas Públicas brasileiras e a criação de uma diretoria de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, integrada à Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde. Reinauguramos o ciclo de diálogos deste fundo documental entrevistando a Diretora do Departamento, Sônia Barros, originando um conjunto atual de textos e vídeos, que refletem uma densa trajetória de vida e um retrato importante para ampliar as reflexões sobre o papel das instituições de ensino, pesquisa, assistência e gestão pública da saúde no momento contemporâneo.

Memória
Silêncio
o passado
o presente.
Silêncio
o passado
ainda presente.
Alfredo Schechtman


Mais cenas presentes - Ampliação dos Horizontes em 2025
Memórias em Ciência Aberta
Em 2020, os fundos documentais da pesquisa Memórias da Saúde Mental/Morar em Liberdade, em uma construção colaborativa, realizaram a primeira inserção de projeto de humanidades com fontes e evidências qualitativas no Arca Dados da Fiocruz. Em 2025, o plano de depósito será ampliado para garantir a preservação e difusão do acervo completo produzido desde 2017, mantendo a proposta original de ser um banco de memórias multimídia para reúso em outras produções de conhecimentos, criações artísticas e culturais e estímulo para novos compartilhamentos de fontes correlatas.
Navegando pelo acervo dos Cadernos da Reforma
Tal como os catálogos de fontes dos grandes acervos de pesquisa histórica, os Cadernos da Reforma objetivam conferir visibilidade aos materiais depositados no repositório em versão de texto enxuto e estimular a circulação do conhecimento de modo acessível, mantendo a coloquialidade da história oral.
O primeiro volume de uma coleção de doze obras multimídia, que apresentam esse conjunto documental heterogêneo

composto por formuladores, idealizadores, gestores e trabalhadores da Saúde Mental Contemporânea, foi lançado em 2021 dedicado a Domingos Sávio e Alfredo Schechtman. Em 2024, Paulo Delgado e Sônia Barros marcam a retomada dessa editoria em um segundo volume. Dessa vez, a publicação será antecedida de uma versão original em vídeos que fomentam de modo ágil novas reflexões sobre as memórias em ato para construção da cidadania do tempo presente, ocupando redes sociais e debates públicos.
Parte 1
Parte 2
Parte 3